sexta-feira, novembro 18, 2005

Dois shots

Dois shots de vodka. Apenas dois shots de vodka foi o preciso para que ele perdesse a alegria e a sua amada. Apenas dois shots de vodka foi o preciso para ela passar por cima do seu coração e (tentar) esquecer quem amava.
Durante anos esteve a seu lado, mostrando-se carinhoso, amigo fiel nas horas mais difíceis, um verdadeiro companheiro! Partilharam alegrias e tristezas, doces horas de lazer, sem nunca nenhum dos dois suspeitar das intenções do outro. Comentários alheios sugeriam que algo se passaria, mas o algo nunca aconteceu... com muita pena dos dois!
Desencontraram-se, naquela noite. Ela procurou por ele, sem o encontrar. Na confusão de corpos dançantes decidiu esperar dançando também, com algumas amigas.
Ele chegou mais tarde. Vinha acompanhado de outra. Na bebedeiro do entusiasmo esquecera-se de procurar por ela. Ele dançou com a outra e nem reparou que ela os olhava. Ele continuava a dançar, com aquela que ela sempre achara que ele gostava. A noite, para ela, tinha acabado ali! Despediu-se de (quase) todos, saindo de mansinho... mas alguém, um conhecido com grande sentido de oportunidade, oferecera-lhe um shot. E ela aceitou.
Dois shots de vodka foram o bastante para se vingar dele, da outra e dos ciúmes que sentia. Os beijos sem significado foram dados e nada mais aconteceu... porque ela não quis! Ele viu-os... e isso surge como a prova que precisava: ficou, para sempre, a achar que ela nunca tinha gostado dele.
Aquele acontecimento afastou-os. Não trocaram sequer uma palavra e apenas seguiram a sua vida, perdendo contacto um do outro.
O tempo passa, as pessoas mudam e cada um segue a sua vida. Até ao dia... até ao dia em que se dá o encontro com o passado, num apinhado comboio em hora de ponta. O local não poderia ser o mais perfeito: fechados, os dois rodeados de perfeitos desconhecidos, numa carruagem durante um percurso que parecia agora (demasiadamente) longo. Embalados pela conversa, em poucos momentos superaram o hiato nas suas vidas, resgatando a intimidade de outrora.
O comboio chega ao seu destino, estranhamente na hora certa. A viagem, afinal, pareceu-lhes curta demais e os dois, com a saudade da amizade perdida, asseguram manter-se em contacto.
Ele, chega a casa, abraça a mulher e beija o seu belo e proeminente abdómen de seis meses. Ela, chega a casa, enrosca-se no sofá com o seu belo e charmoso gato, tentando ler um livro qualquer. Ambos pensam no reencontro. Para ele, o significado de dois shots de vodka deixou de ter importância na sua vida. Ele está feliz. Ela não.

quarta-feira, novembro 16, 2005

Um mês...

“Um mês de vida. Tenho um mês de vida.” As lágrimas escorrem-me pela face enquanto penso nisto. A incerteza do diagnóstico passou, tornou-se precisa e a notícia atinge-me com a rapidez de uma bala.
Saio do hospital. Não me apetece falar com ninguém. A mensagem tranquilizadora é mandada aos pais: “Saí agora... não vou já para casa, depois falamos, ok? Não se preocupem! Beijo”. Enfio-me no primeiro táxi que vejo e digo apenas “para a Expo!”. Não reparo no caminho, vou demasiado absorvida nos meus pensamentos para tal. Ao chegar, dirijo-me automaticamente para “aquele” local, à beira Tejo. “Aquele” meu local, que partilhei apenas com amigos, em dias mais felizes... o local ponto-de-encontro antes de uma noite de borga, o local de conversas fora de horas ao frio da noite, o local de sessões fotográficas, o local de partilha... Aqui, penso em toda a minha vida, relembro o que fiz, o que nunca fiz por não ter coragem, quem ficou para trás e se perdeu no caminho da vida, quem seguiu por rumos diferentes, quem ainda está presente e me acompanha... relembro todos os momentos, bons e maus, brincadeiras, diversões, tristezas e angústias... E choro, choro até me sentir leve, até conseguir erguer a cabeça e pensar no que vou fazer. Tenho vinte anos, planos para o futuro e apenas 30 dias para viver! Mentir está fora de hipótese! Mas dizer a verdade!? Não quero, não posso... como dizer a alguém que vou morrer!? “Olha, sabes, afinal somos como os iogurtes e o meu prazo de validade expirou!”
Temo pelos meus pais, pelo meu irmão... a notícia será um choque, tal como foi para mim! Neste momento, surge-me a questão “contar ou não contar?”... só a eles?!... Não sei!... Quanto aos restantes, não quero que se lembrem de mim como “a coitadinha”... se nunca o fui, porquê ser agora?! Vou viver a minha vida normal, vou fazendo despedidas, sem deixar (ou pelo menos tentar) que o outro não se aperceba que realmente é uma despedida... mas... não! Não vou fazer a minha vida normal. Em função dos meus objectivos, do meu curso, abdiquei muito do meu tempo mas agora não, não o vou fazer!
Vou-me baldar, a estágio, aulas, ao que for! Vou aproveitar o meu tempo a fazer o que quero, passar mais tempo em casa com os meus pais, ler os livros que não li, ter tempo para mim, aceitar os convites que me fazem (pequenos-almoços, jantares, ir às compras ou a um bar, cineminha com os amigos, idas a Coimbra (Faro ou Covilhã!), peças de teatro, cafézinhos, LUXar toda a noite ou um simples passeio apenas... seja o que for! E não voltarei a ter dizer “lamento, mas estou atolada com os estudos” e deixarei de ver o desalento na cara dos outros, após repetições de uma verdade que soa a desculpa).
E, por momentos, páro. Deixo de pensar em mim e apenas fito o rio à minha frente, e as suas calmas ondulações sossegam-me... Olho a paisagem à minha volta. O sol põe-se, pintando o céu de alaranjado. Ao longe vejo nos bancos pares de namorados que aproveitam o momento, vejo as pessoas que passam apressadas, vejo um casal de meia-idade que anda vagarosamente de mão dada, apreciando a paisagem, o momento, apreciando-se mutuamente. E fico triste... sempre tive consciência da morte e a minha morte não me assusta, mas sei que esta morte - a minha - será sinónimo de uma profunda tristeza em três pilares da minha vida. Sei que vou morrer um dia, só nunca pensei que fosse agora... agora não, é cedo demais! Há tanto que fica por fazer... Tenho saudades dos beijos que não dei, da língua que não provei, dos abraços que ficaram por acontecer, do riso que não foi partilhado, do apoio, da amizade, do carinho... tenho saudades dos meus sonhos, e do que agora sei que não irá acontecer...
Vou dar um beijo aos meus pais, adormecer e não acordar... E por isso antes vou escrever. Na minha arca deixarei o meu “testamento” a todos os que me marcaram: uma mensagem minha, escrita só para essa pessoa, com uma fotografia nossa e um abraço bem apertado! Uma lembrança apenas, para quando a memória falhar...


(TPC de 15 de Novembro: é-te dito "tens uma doença terminal e tens 30 dias de vida". Reflecte e diz como vais passar, como te vais sentir e com quem queres partilhar tudo.)

Pagu

Pagu
Mexo, remexo na inquisição
Só quem já morreu na fogueira
Sabe o que é ser carvão
Eu sou pau pra toda obra
Deus da asas à minha cobra
Minha força não é bruta
Não sou freira nem sou puta
Nem toda feiticeira é corcunda
Nem toda brasileira é bunda
Meu peito não é de silicone
Sou mais macho que muito "home"

Bater com a cabeça na parede custa! Quem já foi contra uma parede, com toda a força, sabe que dói. Quem “morreu na fogueira” sabe que magoa, que queima, que nos deita abaixo. Mas o mesmo motivo que me fez mergulhar num aparente precipício, é o que me faz lutar para emergir. Não estou só, tenho a meu lado pessoas muito importantes para a minha vida (amigos e família)... Contudo, conto comigo, acima de tudo, para emergir... dos problemas, das complicações, dos pequenos safanões que a vida nos dá. Sim, tenho “costas largas”, sou “pau pra toda a obra” e abarco muita coisa, mais do que devia, por vezes... e por isso, realmente “sou mais macho que muito home”!
Porém, não sou de ferro. Tenho o meu feitio, peculiar como qualquer outro, com defeitos e virtudes. Mas não, não sou freira... e “a minha força não é bruta” porque não acredito na violência para fazer valer os meus ideais, mas defendo-os e luto por eles!
E tal como “nem toda a feiticeira é corcunda”, detesto estigmas, ideias pré-concebidas ou rótulos que se colocam às pessoas como se fossem frascos de conserva. Acho que vale a pena “perder tempo” a conhecer o outro. Acho que vale a pena abdicar de 15 minutos da minha mísera hora de almoço, se com isso puser um sorriso na cara de alguém. E não o faço para ser a “amigalhaça” ou a “relações públicas da turma”, simplesmente porque desde que me conheço que gosto de conhecer pessoas e de descobrir os seus mundinhos. Porque ganho sempre mais qualquer coisa, por mais ínfima que seja!...
E, se ao se comprar um produto qualquer muitas vezes se leva gato por lebre, a nível das pessoas e das relações humanas tal acontece amiudemente! Tempo, paciência e alguma ginástica mental são elementos chave na relação, porque o meu “pacote exterior” por vezes engana e o que vai cá dentro, nem sempre é o que transparece para fora ou nem sempre é o que as pessoas captam!
Por isso, sim, sou como a Pagu: “não sou freira”, mas também não “sou puta”!
(TPC de 14 de Novembro, para ler depois na aula: responder à questão "Quem sou eu?" recorrendo a um excerto de um texto... neste caso, uma letra de Rita Lee e Zélia Duncan, interpretada por Maria Rita)

domingo, novembro 13, 2005

O guardanapo

Há dois dias atrás, esta pergunta foi-me colocada, em jeito de brincadeira: “ E tu o que escrevias num guardanapo em branco, sublimemente deixado na tua perna!? ” Não sabia o que responder... aliei-me ao silêncio! Confesso que nem em tal pensei mais, até hoje...
No meio da noite gélida, chega o aconchego: um convite surge do nada e torna-se real em segundos. Aceito-o sem pensar duas vezes, impulsivamente, apesar de ser tarde... simplesmente porque há coisas que não se recusam!
As saudades vão sendo dissecadas pelo caminho, até se chegar ao bar que nos iria abrigar da chuva. A amena conversa é subitamente interrompida pela banda que começa a tocar. A música ao vivo quebra as possibilidades de diálogo mas, antes que tudo se resumisse a uma simples troca de olhares e risos, puxo da caneta e, em jeito de brincadeira, escrevo num guardanapo branco, que coloco sublimemente sobre a mesa. Escrevi a caneta vermelha (apenas por ser a que tinha disponível). Escrevi para a pessoa que tinha à minha frente. Escrevi (quase) tudo o que pensei naquele momento, pouco faltou escrever... e o que não escrevi, disse-o depois, porque sei que não é de cristal, apesar de o parecer! Ao seu triste e pensativo “Falta-me qualquer coisa!...” só poderia responder com um pouco esclarecedor “Nem imaginas como te compreendo!...”, pois como humanos, de carne e osso, temos sempre dúvidas e procuramos respostas... Da conversa séria surge um sorriso tímido, um olhar pensativo, que a piada na hora certa faz mudar o rumo do assunto, fazendo-o voar para outra direcção.
A música acaba, as palavras deixam de ser escritas e alegremente se vai falando no regresso a casa. Quanto mais agradável é a conversa, mais as horas passam sem deixar rasto... mas, mais cedo ou mais tarde, o tempo faz-se notar e o sono vai aparecendo de mansinho. A hora da despedida aparece, os dois beijos são estrategicamente colocados sobre a face, e depois cada um segue para a sua casa.
A noite foi uma surpresa agradável... e por isso, agora, já sei o que responder à pergunta! Escreveria apenas “ Um dia lixas-te... já faltou mais! :P ” e deixava sublimemente o guardanapo na sua perna.

terça-feira, novembro 08, 2005

O quadro

"Isto? É isto?!? Já fizeste muito melhor! Isto é o quê? Nada de realismo..." – o tom depreciativo saiu-lhe disparado pela boca, quase como uma bala direitinha ao coração - "E as cores... Sumidas e pálidas? Nunca!! Olha o vermelho, a cor do sangue, parece morto! Que horror... que desperdício de tela!"
Frontalidade? Sinceridade? Rudeza de palavras! Ela não lhe disse nada que ele já não soubesse, mas o modo como o disse marcou-o... O quadro estava incompleto e há muito que não o conseguia acabar. Desde que ela saíra de casa, perdera a sua musa... nas partilhas, a inspiração foi com ela. Ainda tentou recomeçar outros projectos... mas o sentido do que fazia tinha desaparecido e ele encontrava-se irremediavelmente perdido no meio de recordações e tentativas (frustadas) de se adaptar a uma vida solitária. Procurou o conforto da reconciliação... promessas de mudança e juras de amor foram feitas e, de novo, o casal se juntou.
A estabilidade que não encontrava sózinho, também não era possível com ela. As juras são facilmente esquecidas e, em pouco tempo, os conflitos sucediam-se a um ritmo alucinante. A frieza, a falta de emoção e de delicadeza eram chocantes! Ele esperava um conforto, uma palavra amiga... ela dava-lhe desprezo e pouca atenção, sendo constante o seu ar de enfado.
A gota de água foi o quadro. Depois de tudo o que passaram, a demonstração de profunda indelicadeza e desagrado pelo seu trabalho!? Ele, que lhe dava tudo, que lhe dedicava a vida e o trabalho, que só tinha olhos para ela e só a queria ver feliz não aguentou mais uma estalada psicológica e decidiu acabar com o seu próprio sofrimento.
Olhou para ela. Olhou-a nos olhos e viu o escárnio, o ar de gozo indelicado que sempre aparecia nas horas mais íntimas, de entrega... olhou-a uma vez mais, beijou-a calmamente e disse-lhe apenas "vai ficar lindo... dedico-o a ti!"... e pegou no primeiro pincel que encontrou... (o sangue jorrava do corpo dela, caindo aleatoriamente no mortiço quadro, agora repleto do seu, tão desejado, vermelho vivo)...


(Abril 2005)