sexta-feira, dezembro 30, 2005

A filha

Sentado na cadeira frente a um computador ligado, penso no que hei-de fazer. Outrora tinha um motivo para o fazer, agora já não. Os trabalhos parecem-me ocos e simplesmente deixo de os fazer. Já não arranjo subterfúgios para o meu não querer. Falta de motivação? Ou puro desprazer? Depois de anos a fio, descubro que não é isto que quero.
A miúda ainda é nova e precisa de cuidados. Idas ao médico, o colégio privado e a roupa que, quase nova, é posta de lado, porque ela não pára de crescer...
A Manuela não compreende. Diz que a vida está cara e que a filha dela merece o melhor. Curioso, como agora é “a filha dela”. Lembro-me de quando ainda era a nossa filha, um projecto nosso, o nosso amor. Lembro-me de quando não interessava o que eu fazia, o que eu ganhava, quando a vida era mais simples, quando a ilusão de que só o amor chegava.
A Luísa nasceu e tudo mudou. Precisávamos de dinheiro certo ao fim do mês e a estabilidade paga-se caro. Vivi em função das duas, sem nunca me queixar. Adoro a Luísa, como nunca imaginei poder vir a amar assim uma mulher. Da Manuela... há quanto tempo não posso dizer o mesmo? Perdi conta aos dias! Nunca pensei que no meio dos nossos sonhos nos perdessemos um do outro e, muito menos, que eu me perdesse de mim.
O nosso amor tornou-se secundário face ao dinheiro, às exigências de uma boa educação, de um aparente bem-estar que exigia polidez e ostentação. Passámos a estar juntos socialmente, sem demonstrações afectivas, sem carinhos partilhados. Deixámos de ser quem éramos. A Manuela cedeu às próprias raízes, aos “traumas” da educação castradora com que sempre lutara, que a marcou profundamente e da qual, agora vejo, não foi capaz de se libertar...
Arrasto-me frente ao computador... deixei de o ver com paixão, deixei de ver a Manuela com tesão... Pela Luísa não sou capaz de fugir de tudo, não ainda... ela é ainda uma criança e eu amo-a demais para a ver somente dois dias por semana e deixá-la aos cuidados de uma mãe que se preocupa somente com compras e que não sabe o que é brincar! Por isso, mantenho a fachada de um casamento perfeito. Aos olhos da pequena, a relação dos pais é repleta de felicidade. Aos olhos da Manuela eu não sou mais do que uma conta bancária, sempre pronto a obedecer-lhe e a proporcionar-lhe mais um casaco de pele de marta ou o novo vestido da colecção de um estilista de renome ou a viagem paradisíaca que está em voga, e de onde tiramos as perfeitas fotografias da nossa (im)perfeita união.