terça-feira, novembro 08, 2005

O quadro

"Isto? É isto?!? Já fizeste muito melhor! Isto é o quê? Nada de realismo..." – o tom depreciativo saiu-lhe disparado pela boca, quase como uma bala direitinha ao coração - "E as cores... Sumidas e pálidas? Nunca!! Olha o vermelho, a cor do sangue, parece morto! Que horror... que desperdício de tela!"
Frontalidade? Sinceridade? Rudeza de palavras! Ela não lhe disse nada que ele já não soubesse, mas o modo como o disse marcou-o... O quadro estava incompleto e há muito que não o conseguia acabar. Desde que ela saíra de casa, perdera a sua musa... nas partilhas, a inspiração foi com ela. Ainda tentou recomeçar outros projectos... mas o sentido do que fazia tinha desaparecido e ele encontrava-se irremediavelmente perdido no meio de recordações e tentativas (frustadas) de se adaptar a uma vida solitária. Procurou o conforto da reconciliação... promessas de mudança e juras de amor foram feitas e, de novo, o casal se juntou.
A estabilidade que não encontrava sózinho, também não era possível com ela. As juras são facilmente esquecidas e, em pouco tempo, os conflitos sucediam-se a um ritmo alucinante. A frieza, a falta de emoção e de delicadeza eram chocantes! Ele esperava um conforto, uma palavra amiga... ela dava-lhe desprezo e pouca atenção, sendo constante o seu ar de enfado.
A gota de água foi o quadro. Depois de tudo o que passaram, a demonstração de profunda indelicadeza e desagrado pelo seu trabalho!? Ele, que lhe dava tudo, que lhe dedicava a vida e o trabalho, que só tinha olhos para ela e só a queria ver feliz não aguentou mais uma estalada psicológica e decidiu acabar com o seu próprio sofrimento.
Olhou para ela. Olhou-a nos olhos e viu o escárnio, o ar de gozo indelicado que sempre aparecia nas horas mais íntimas, de entrega... olhou-a uma vez mais, beijou-a calmamente e disse-lhe apenas "vai ficar lindo... dedico-o a ti!"... e pegou no primeiro pincel que encontrou... (o sangue jorrava do corpo dela, caindo aleatoriamente no mortiço quadro, agora repleto do seu, tão desejado, vermelho vivo)...


(Abril 2005)

1 Comments:

Blogger BrunoS said...

tenho de te arranjar um caderno vermelho. ou rosa! ja que o meu é azul.

11/11/05 22:19  

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