sexta-feira, junho 19, 2009

Erase

De t-shirt colada ao corpo e sorriso malandro no rosto, chegaste, radiante. O mundo está aos teus pés. Tens a confiança cega de quem manda, usas o manto e a coroa do rei mas no fundo, bem no fundo, sabes que sempre foste um servo.... de ti, dos outros, do que pensam e do que querem de ti... um servo dos ideais e do que tem-de-ser, porque não sabes ser de outra maneira.

O poder absorve-te as ideias e os teus olhos brilham com ele. Delicias-te com um bom duelo de copos, um debate de intelectual, uma batalha de sexos que tens de ser tu a vencer. Chegaste, madeixa de cabelo nos olhos e pose feita... quase nada te desarma! Mas eu conheço-te... sussurro-te ao ouvido e sorris.

Dois segundos, por apenas dois segundos, penso que te conheço e chego até ti. Tudo parece desfocado, no meio da neblina de corpos dançantes e mais nada interessa... naquele eterno momento de dois segundos, vejo-te como tu és, sem capas nem coroas de rei. A fotografia mental fica como recordação... não há máquina no mundo que consiga captar esse ar, de menino perdido, que teimas em não mostrar. Os dois segundos dissipam-se... e tu voltas a esconder-te dentro de ti próprio. O que eu vi fica para mim e tu reages como se nada fosse... duas piadas e voas para longe, como se ficar fosse ter de enfrentar uma escolha difícil e não apenas deixares-te estar... mas não, tu foges!

Não quero, não te quero assim. E tu teimas em continuar... é mais fácil esconder-se do que enfrentar, encarar a realidade e dizer "agora é a sério". Vives atormentado com a possibilidade de te prenderes a alguém... lembras-me de uma raposa que um dia ensinou um rapazinho a amar, mas isso eram histórias de encantar e a nossa estória já há muito perdeu o encanto. Não se vive de dois segundos, espalhados numa eternidade de desencontros e impossibilidades. Recuso-me a viver em suspenso, recheada de fotografias mentais e fragmentos de momentos, de me condicionar por ti... O meu cartão de memória está cheio. Não cabe mais nada que venha de ti. "Caution! Erase all?" Disse "ok", e carreguei no botão. Será que chega para te apagar!?

[do fundo da arca - escrito a 06.11.2006]

quarta-feira, junho 17, 2009

Alice

Olho para trás e o caminho parece-me estranho e confuso. Ainda ontem o percorri, como outras vezes, convicta e sem receios. Hoje, parece-me apenas uma pequena gruta, escura, funda, claustrofóbica, por onde palmilhei curvada e descalça, sem poder respirar. Uma gruta que explorei sem lanterna nem medo de morcegos, mas que pouco a pouco foi ficando mais pequena mas estranhamente aconchegante no seu ambiente húmido e sombrio.

Olho para trás e não sei bem como aqui cheguei. A gruta possuía apenas uma ténue luz, minúscula e intermitente, perto da superfície... uma pequena vela de paz que estava tão longe do interior, quase inalcansável para mim. Imóvel, quase espectadora da minha própria vida, actriz existindo apenas após o fechar da cortina, no silêncio do palco vazio, inveredei por uma realidade alternativa, patológica e pouco confortável. Alice fui, no outro lado do espelho, habituando-me a viver na escuridão.

Olho para trás e vejo uma luz forte na gruta... um holofote enorme, um grito de esperança, uma mão que me aplaude... E a Alice que fui acorda atordoada e sente-se triste, exausta, frustrada, uma migalha de si própria. E do incoerente caos de sentimentos, surge a calma.

Olho para trás... vejo que saí da gruta e voei, para bem longe dali... Sinto-me bem, livre, inteira, feliz. Agora respiro. Respiro fundo, bem fundo, com a total capacidade dos meus pulmões, que agora se expandem completamente, com uma leveza incrível.

Olho para trás... e saí... do outro lado de mim!

sábado, março 25, 2006

A caixa

Abri a caixa onde te guardei há muito tempo.
Estavas perdido, onde a memória não chega, oculto pela nebulina citadina, aquela que te afaga o rosto todas as manhãs.
Estavas escondido, afastado de mim e do tudo que ficou para trás. O tudo... esse “tudo” impensável, incompreensível e quase invisível para todos, que se manteve assim, também, para nós... até agora!
Abri a caixa e vi-te. O mesmo olhar, a mesma voz, as mesmas palavras... as explicações que eu nunca pedi e que sempre me deste, delicada e detalhadamente... e as reticências de sempre!...
Abri a caixa, olhei bem fundo de ti e vi-me a mim... no emaranhado de caminhos e vidas, de escolhas e almas, que se cruzam por meros instantes, abri a caixa para te (e me) reencontrar.
Abri a caixa e senti-te... como sempre, com se “fosse ontem”, como se estivesses aqui!
Abri a caixa e recordei-te... para trás ficaram as dúvidas, as questões nunca respondidas e os desejos não saciados. Para trás, fica o sonho, a idealização e a esperança que fizeste perder... para trás, ficaste tu, eu e todo resto, o “tudo” que fomos, o “tudo” que não partilhámos e o nada que restou. Para trás, bem lá atrás, ficaram as reticências...
Hoje, abri a caixa, a minha caixa de Pandora onde te escondi. Não tive medo, nem sequer estremeci, apenas... sorri!

(Alma, Março 2006)

Resposta a Pandora

Ainda me lembro de ti, “miúda”, e de te ajudar a vestir o casaco por a saia ser curta. Ainda me lembro de ganhares o jogo, não sabendo jogar. Ainda me lembro de não conseguir parar de olhar para a tua saia...
Ainda me lembro de como sempre me conseguias tirar fotografias, mesmo quando fugia... lembro-me do riso, dos olhares, das intermináveis conversas, das brincadeiras comprometedoras, das palavras nunca ditas e da última vez que te vi. Escolheste-me a mim, abandonarias os teus amigos por mim... para passar uma noite, apenas, comigo e eu não deixei que o fizesses. Nunca deixei que o fizesses! Ainda me lembro do teu olhar, desolado, enquanto me ia embora...
Tenho a certeza que te interrogaste porquê... ambos sabemos que havia muito pelo meio... e muitas palavras proíbidas e desejos recalcados que não conseguia assumir. Eras “miúda” e quem agiu como miúdo fui eu: virei costas e parti, sem nunca me despedir.
Parece que foi ontem e uma eternidade de dias, pessoas, corpos e vontades já passaram pela minha vida. Atrás, lá bem atrás, ficaste tu... e agora apareces, com renovada segurança, mas com o mesmo sorriso de sempre... agora que assumo, que te quero, reaparecem as minhas reticências e tu nem vacilas... a minha “miúda” cresceu!?

(Alma, Março 2006)

Viagem

Num ápice pegas nas roupas, sem fazer escolhas reflectidas. Aleatoriamente, tudo o que precisas é posto em cima da cama. Num emaranhado de cores e texturas, sem qualquer ordem ou lógica, despejas tudo dentro da mala. O coração estremece enquanto relembras tudo o que passaste. Fugir, não é hipótese mas ficar, também não. A casa não te deixa esquecer e só te faz obcecar por todos os pormenores antes da partida dele.
Está tudo no mesmo lugar, as roupas em cima da cadeira, fruto da indecisão matinal; as papeladas do trabalho ao lado dos post-it's colados à mesa "Arrumo isto quando chegar! Um beijo com amor"; os sapatos espalhados; a máquina de barbear; os cd's abertos; os três livros que ele andava a ler; a toalha dele no chão; o cheiro da almofada... tudo! Limpas o pó meticulosamente com um espanador, só para manteres tudo em ordem, já que a tua própria cabeça se tornou num turbilhão de pensamentos desconexos que não consegues controlar.
Nunca pensaste ficar assim... sempre tiveram problemas, ele queixava-se de ti. Tu eras a rude, prepotente, sem ser meiga o suficiente! Tu queixavas-te dos rituais, das paranóias religiosas, das comidas estranhas e do pudor dele. E, mesmo assim, entre discussões e acusações, estavam juntos... e assim se mantiveram, ainda mais próximos, quando o barco sofreu o primeiro abanão... ao qual se seguiram muitos mais!
De rude esposa passaste a mãe, mulher, amante, amiga e confidente! A relação estreitou-se, o amor e toda a sua cumplicidade, sobressaíam apenas numa carícia...
Uniram forças, lutaram juntos, rezaram... encontraram a perfeita união ao atravessar as mais turbulentas águas, mas nem assim ele ficou...
A partida dele abalou-te pela certeza, pela sentença proferida de sorrisos nos lábios e a tranquilidade no olhar: “Vou partir, esta noite...”
Ontem tinhas-lo nos teus braços. Velaste por ele enquanto rezavas para que a partida fosse adiada, para que tudo fosse uma alucinação, apenas excesso de morfina a falar por ele... viste-o definhar, à tua frente, sem nada poderes fazer. Viste-o acalmar-se, e dormir! Ainda a chorar, cumpriste a promeça e completaste o ritual... “Que a tua alma voe em paz, meu amor!”
Hoje sofres e pensas “ele não quer que eu sofra”. Já não tens lágrimas, apenas uma angústia enorme no peito que não te deixa respirar.
Olhas à tua volta... e estás só! A casa, a pouco e pouco, começa a atormentar-te! Decides sair...
Vês os cd's, os livros, as fotografias e decides não levar nada. O passado pesa e não te deixa voar. Queres ir leve, como uma pena, de espírito e bagagem, e só o teu coração tem o peso do mundo!
Pegas na tua mala e sais. Hoje é dia de viagem, com bilhete só de ida, para um sítio qualquer...

(Escrito em Alma, a 22 Março)

sábado, dezembro 31, 2005

Ano novo...

De noite, mal dormia. Acordava cansada, com o desejo íntimo de voltar a adormecer sem sonhar... pelo menos uma noite, pelo menos uma mísera noite, sem sonhos nem pesadelos, sem as personagens distantes e desconhecidas que não a deixavam descansar... ao menos uma noite em que pudesse fechar os olhos, dormir, relaxar, sabendo que o acordar seria lento, progressivamente sentir-se-ia acordada até que os seus olhos se abririam na escuridão do quarto, no aconchego dos lençóis. Andava cansada. Acordava ainda mais cansada. A maquilhagem disfarçava as olheias e o sorriso era pintado a baton. Por dentro, as lágrimas amontoavam-se numa imensa cascata de tristeza.
O dia começava cedo e sempre do mesmo modo: despertava com o seu próprio grito de pânico, tremendo, agarrada a uma almofada e envolta em suor. A obrigação do trabalho, mais do que a vontade, faziam com que se levantasse da cama. O duche quente, muito quente, para tirar do corpo o que a atormentava... apenas ficava ali, parada, a sentir a água quente a acariciar-lhe a pele suada, enquanto tentava em nada pensar... A água era como uma superficial limpeza da alma, a serenidade matinal que precisava para aguentar o dia de trabalho.
Saía de casa para enfrentar a amálgama de corpos e almas que, sem pedir licença, bruscamente se tocam na confusão diária dos transportes. Chegava ao trabalho mais cansada ainda. Sempre tivera a impressão que estando rodeada de pessoas, por todos os lados, estas tiravam-lhe o seu bem mais precioso, a energia! Tornara-se, com o passar dos anos, um suplício andar na rua, nos transportes, nos centros comerciais apinhados de gente por todo lado, sem escapatória possível. A ideia de um simples jantar passou a causar-lhe ansiedade, um medo inexplicável e aterrador que a fazia olhar para as pessoas como sanguessugas energéticas, sempre ávidas a roubar-lhe a sua força vital.
Cansou-se de conversas superficiais, de bocas impensadas e invejosas de pequenas pessoas, de fingir que apreciava quando odiava e de ser delicada e educada com gente sem maneiras, mas de nariz empinado, que só vêem o seu umbigo. Cansou-se dos pseudo-intelectuais, aqueles que são muito profundos e que tudo sabem, que impõem a sua opinião perante todos, mas que têm um discurso repetitivo e intrínsecamente monótono... basta parar para observar, e ouvir, um bocadinho!
Tornou-se solitária, agressiva, desconfiada. A situação foi piorando gradualmente, o que afastou família e amigos... Sucumbiu ao pessimismo. Nada na vida tinha uma razão lógica de ser. A Igreja, por ser de homens, não a confortava, era um local inóspito e sem sentido, criado para acalmar as mentes, anestesiando-as, oferecendo-lhes um enlatado "dois em um" entre suposta salvação e pensamento dogmático. Não, já não se revia nisto... em Deus, muito menos! Nunca o vira, nunca foi ajudada, questionava-se da sua real existência... O Pai Natal esse, afinal também não existia, sendo meramente uma criação de incentivo consumista numa época de ironias e sarcasmos. A solidariedade e a bondade estavam em vias de extinção. O cinismo e a insensibilidade reinavam no quotidiano. O amor... esse sentimento, antes mágico e que a fazia sonhar, que significava o enorme apreço por alguém, a possibilidade de criar laços e estabelecer uma ligação, tornara-se sinónimo de ardil impudente para fortuitas relações que acabam num parque de estacionamento qualquer, entre duas golfadas de ar inspirado e ofegante.
A vida perdera muita da sua coloração original. O cor-de-rosa foi-se dissipando, e o negro assumiu posição activa. Naquela noite de 31 de Dezembro, quando o céu estava repleto de cores e a animação corria pelas ruas, ela anestesiara os seus fantasmas e dormia calmamente sobre a sua cama, com um sorriso nos lábios.
Na mesa de cabeceira restava apenas uma seringa. Da cozinha ao quarto, havia um rasto de ampolas e algumas embalagens vazias do sonífero que lhe correra nas veias. Foi descoberta três dias depois, pela sua mãe. Não se despedira de ninguém, não deixara nenhuma carta escrita... afinal, apenas queria descansar!

sexta-feira, dezembro 30, 2005

A filha

Sentado na cadeira frente a um computador ligado, penso no que hei-de fazer. Outrora tinha um motivo para o fazer, agora já não. Os trabalhos parecem-me ocos e simplesmente deixo de os fazer. Já não arranjo subterfúgios para o meu não querer. Falta de motivação? Ou puro desprazer? Depois de anos a fio, descubro que não é isto que quero.
A miúda ainda é nova e precisa de cuidados. Idas ao médico, o colégio privado e a roupa que, quase nova, é posta de lado, porque ela não pára de crescer...
A Manuela não compreende. Diz que a vida está cara e que a filha dela merece o melhor. Curioso, como agora é “a filha dela”. Lembro-me de quando ainda era a nossa filha, um projecto nosso, o nosso amor. Lembro-me de quando não interessava o que eu fazia, o que eu ganhava, quando a vida era mais simples, quando a ilusão de que só o amor chegava.
A Luísa nasceu e tudo mudou. Precisávamos de dinheiro certo ao fim do mês e a estabilidade paga-se caro. Vivi em função das duas, sem nunca me queixar. Adoro a Luísa, como nunca imaginei poder vir a amar assim uma mulher. Da Manuela... há quanto tempo não posso dizer o mesmo? Perdi conta aos dias! Nunca pensei que no meio dos nossos sonhos nos perdessemos um do outro e, muito menos, que eu me perdesse de mim.
O nosso amor tornou-se secundário face ao dinheiro, às exigências de uma boa educação, de um aparente bem-estar que exigia polidez e ostentação. Passámos a estar juntos socialmente, sem demonstrações afectivas, sem carinhos partilhados. Deixámos de ser quem éramos. A Manuela cedeu às próprias raízes, aos “traumas” da educação castradora com que sempre lutara, que a marcou profundamente e da qual, agora vejo, não foi capaz de se libertar...
Arrasto-me frente ao computador... deixei de o ver com paixão, deixei de ver a Manuela com tesão... Pela Luísa não sou capaz de fugir de tudo, não ainda... ela é ainda uma criança e eu amo-a demais para a ver somente dois dias por semana e deixá-la aos cuidados de uma mãe que se preocupa somente com compras e que não sabe o que é brincar! Por isso, mantenho a fachada de um casamento perfeito. Aos olhos da pequena, a relação dos pais é repleta de felicidade. Aos olhos da Manuela eu não sou mais do que uma conta bancária, sempre pronto a obedecer-lhe e a proporcionar-lhe mais um casaco de pele de marta ou o novo vestido da colecção de um estilista de renome ou a viagem paradisíaca que está em voga, e de onde tiramos as perfeitas fotografias da nossa (im)perfeita união.

sexta-feira, novembro 18, 2005

Dois shots

Dois shots de vodka. Apenas dois shots de vodka foi o preciso para que ele perdesse a alegria e a sua amada. Apenas dois shots de vodka foi o preciso para ela passar por cima do seu coração e (tentar) esquecer quem amava.
Durante anos esteve a seu lado, mostrando-se carinhoso, amigo fiel nas horas mais difíceis, um verdadeiro companheiro! Partilharam alegrias e tristezas, doces horas de lazer, sem nunca nenhum dos dois suspeitar das intenções do outro. Comentários alheios sugeriam que algo se passaria, mas o algo nunca aconteceu... com muita pena dos dois!
Desencontraram-se, naquela noite. Ela procurou por ele, sem o encontrar. Na confusão de corpos dançantes decidiu esperar dançando também, com algumas amigas.
Ele chegou mais tarde. Vinha acompanhado de outra. Na bebedeiro do entusiasmo esquecera-se de procurar por ela. Ele dançou com a outra e nem reparou que ela os olhava. Ele continuava a dançar, com aquela que ela sempre achara que ele gostava. A noite, para ela, tinha acabado ali! Despediu-se de (quase) todos, saindo de mansinho... mas alguém, um conhecido com grande sentido de oportunidade, oferecera-lhe um shot. E ela aceitou.
Dois shots de vodka foram o bastante para se vingar dele, da outra e dos ciúmes que sentia. Os beijos sem significado foram dados e nada mais aconteceu... porque ela não quis! Ele viu-os... e isso surge como a prova que precisava: ficou, para sempre, a achar que ela nunca tinha gostado dele.
Aquele acontecimento afastou-os. Não trocaram sequer uma palavra e apenas seguiram a sua vida, perdendo contacto um do outro.
O tempo passa, as pessoas mudam e cada um segue a sua vida. Até ao dia... até ao dia em que se dá o encontro com o passado, num apinhado comboio em hora de ponta. O local não poderia ser o mais perfeito: fechados, os dois rodeados de perfeitos desconhecidos, numa carruagem durante um percurso que parecia agora (demasiadamente) longo. Embalados pela conversa, em poucos momentos superaram o hiato nas suas vidas, resgatando a intimidade de outrora.
O comboio chega ao seu destino, estranhamente na hora certa. A viagem, afinal, pareceu-lhes curta demais e os dois, com a saudade da amizade perdida, asseguram manter-se em contacto.
Ele, chega a casa, abraça a mulher e beija o seu belo e proeminente abdómen de seis meses. Ela, chega a casa, enrosca-se no sofá com o seu belo e charmoso gato, tentando ler um livro qualquer. Ambos pensam no reencontro. Para ele, o significado de dois shots de vodka deixou de ter importância na sua vida. Ele está feliz. Ela não.

quarta-feira, novembro 16, 2005

Um mês...

“Um mês de vida. Tenho um mês de vida.” As lágrimas escorrem-me pela face enquanto penso nisto. A incerteza do diagnóstico passou, tornou-se precisa e a notícia atinge-me com a rapidez de uma bala.
Saio do hospital. Não me apetece falar com ninguém. A mensagem tranquilizadora é mandada aos pais: “Saí agora... não vou já para casa, depois falamos, ok? Não se preocupem! Beijo”. Enfio-me no primeiro táxi que vejo e digo apenas “para a Expo!”. Não reparo no caminho, vou demasiado absorvida nos meus pensamentos para tal. Ao chegar, dirijo-me automaticamente para “aquele” local, à beira Tejo. “Aquele” meu local, que partilhei apenas com amigos, em dias mais felizes... o local ponto-de-encontro antes de uma noite de borga, o local de conversas fora de horas ao frio da noite, o local de sessões fotográficas, o local de partilha... Aqui, penso em toda a minha vida, relembro o que fiz, o que nunca fiz por não ter coragem, quem ficou para trás e se perdeu no caminho da vida, quem seguiu por rumos diferentes, quem ainda está presente e me acompanha... relembro todos os momentos, bons e maus, brincadeiras, diversões, tristezas e angústias... E choro, choro até me sentir leve, até conseguir erguer a cabeça e pensar no que vou fazer. Tenho vinte anos, planos para o futuro e apenas 30 dias para viver! Mentir está fora de hipótese! Mas dizer a verdade!? Não quero, não posso... como dizer a alguém que vou morrer!? “Olha, sabes, afinal somos como os iogurtes e o meu prazo de validade expirou!”
Temo pelos meus pais, pelo meu irmão... a notícia será um choque, tal como foi para mim! Neste momento, surge-me a questão “contar ou não contar?”... só a eles?!... Não sei!... Quanto aos restantes, não quero que se lembrem de mim como “a coitadinha”... se nunca o fui, porquê ser agora?! Vou viver a minha vida normal, vou fazendo despedidas, sem deixar (ou pelo menos tentar) que o outro não se aperceba que realmente é uma despedida... mas... não! Não vou fazer a minha vida normal. Em função dos meus objectivos, do meu curso, abdiquei muito do meu tempo mas agora não, não o vou fazer!
Vou-me baldar, a estágio, aulas, ao que for! Vou aproveitar o meu tempo a fazer o que quero, passar mais tempo em casa com os meus pais, ler os livros que não li, ter tempo para mim, aceitar os convites que me fazem (pequenos-almoços, jantares, ir às compras ou a um bar, cineminha com os amigos, idas a Coimbra (Faro ou Covilhã!), peças de teatro, cafézinhos, LUXar toda a noite ou um simples passeio apenas... seja o que for! E não voltarei a ter dizer “lamento, mas estou atolada com os estudos” e deixarei de ver o desalento na cara dos outros, após repetições de uma verdade que soa a desculpa).
E, por momentos, páro. Deixo de pensar em mim e apenas fito o rio à minha frente, e as suas calmas ondulações sossegam-me... Olho a paisagem à minha volta. O sol põe-se, pintando o céu de alaranjado. Ao longe vejo nos bancos pares de namorados que aproveitam o momento, vejo as pessoas que passam apressadas, vejo um casal de meia-idade que anda vagarosamente de mão dada, apreciando a paisagem, o momento, apreciando-se mutuamente. E fico triste... sempre tive consciência da morte e a minha morte não me assusta, mas sei que esta morte - a minha - será sinónimo de uma profunda tristeza em três pilares da minha vida. Sei que vou morrer um dia, só nunca pensei que fosse agora... agora não, é cedo demais! Há tanto que fica por fazer... Tenho saudades dos beijos que não dei, da língua que não provei, dos abraços que ficaram por acontecer, do riso que não foi partilhado, do apoio, da amizade, do carinho... tenho saudades dos meus sonhos, e do que agora sei que não irá acontecer...
Vou dar um beijo aos meus pais, adormecer e não acordar... E por isso antes vou escrever. Na minha arca deixarei o meu “testamento” a todos os que me marcaram: uma mensagem minha, escrita só para essa pessoa, com uma fotografia nossa e um abraço bem apertado! Uma lembrança apenas, para quando a memória falhar...


(TPC de 15 de Novembro: é-te dito "tens uma doença terminal e tens 30 dias de vida". Reflecte e diz como vais passar, como te vais sentir e com quem queres partilhar tudo.)

Pagu

Pagu
Mexo, remexo na inquisição
Só quem já morreu na fogueira
Sabe o que é ser carvão
Eu sou pau pra toda obra
Deus da asas à minha cobra
Minha força não é bruta
Não sou freira nem sou puta
Nem toda feiticeira é corcunda
Nem toda brasileira é bunda
Meu peito não é de silicone
Sou mais macho que muito "home"

Bater com a cabeça na parede custa! Quem já foi contra uma parede, com toda a força, sabe que dói. Quem “morreu na fogueira” sabe que magoa, que queima, que nos deita abaixo. Mas o mesmo motivo que me fez mergulhar num aparente precipício, é o que me faz lutar para emergir. Não estou só, tenho a meu lado pessoas muito importantes para a minha vida (amigos e família)... Contudo, conto comigo, acima de tudo, para emergir... dos problemas, das complicações, dos pequenos safanões que a vida nos dá. Sim, tenho “costas largas”, sou “pau pra toda a obra” e abarco muita coisa, mais do que devia, por vezes... e por isso, realmente “sou mais macho que muito home”!
Porém, não sou de ferro. Tenho o meu feitio, peculiar como qualquer outro, com defeitos e virtudes. Mas não, não sou freira... e “a minha força não é bruta” porque não acredito na violência para fazer valer os meus ideais, mas defendo-os e luto por eles!
E tal como “nem toda a feiticeira é corcunda”, detesto estigmas, ideias pré-concebidas ou rótulos que se colocam às pessoas como se fossem frascos de conserva. Acho que vale a pena “perder tempo” a conhecer o outro. Acho que vale a pena abdicar de 15 minutos da minha mísera hora de almoço, se com isso puser um sorriso na cara de alguém. E não o faço para ser a “amigalhaça” ou a “relações públicas da turma”, simplesmente porque desde que me conheço que gosto de conhecer pessoas e de descobrir os seus mundinhos. Porque ganho sempre mais qualquer coisa, por mais ínfima que seja!...
E, se ao se comprar um produto qualquer muitas vezes se leva gato por lebre, a nível das pessoas e das relações humanas tal acontece amiudemente! Tempo, paciência e alguma ginástica mental são elementos chave na relação, porque o meu “pacote exterior” por vezes engana e o que vai cá dentro, nem sempre é o que transparece para fora ou nem sempre é o que as pessoas captam!
Por isso, sim, sou como a Pagu: “não sou freira”, mas também não “sou puta”!
(TPC de 14 de Novembro, para ler depois na aula: responder à questão "Quem sou eu?" recorrendo a um excerto de um texto... neste caso, uma letra de Rita Lee e Zélia Duncan, interpretada por Maria Rita)