sábado, março 25, 2006

A caixa

Abri a caixa onde te guardei há muito tempo.
Estavas perdido, onde a memória não chega, oculto pela nebulina citadina, aquela que te afaga o rosto todas as manhãs.
Estavas escondido, afastado de mim e do tudo que ficou para trás. O tudo... esse “tudo” impensável, incompreensível e quase invisível para todos, que se manteve assim, também, para nós... até agora!
Abri a caixa e vi-te. O mesmo olhar, a mesma voz, as mesmas palavras... as explicações que eu nunca pedi e que sempre me deste, delicada e detalhadamente... e as reticências de sempre!...
Abri a caixa, olhei bem fundo de ti e vi-me a mim... no emaranhado de caminhos e vidas, de escolhas e almas, que se cruzam por meros instantes, abri a caixa para te (e me) reencontrar.
Abri a caixa e senti-te... como sempre, com se “fosse ontem”, como se estivesses aqui!
Abri a caixa e recordei-te... para trás ficaram as dúvidas, as questões nunca respondidas e os desejos não saciados. Para trás, fica o sonho, a idealização e a esperança que fizeste perder... para trás, ficaste tu, eu e todo resto, o “tudo” que fomos, o “tudo” que não partilhámos e o nada que restou. Para trás, bem lá atrás, ficaram as reticências...
Hoje, abri a caixa, a minha caixa de Pandora onde te escondi. Não tive medo, nem sequer estremeci, apenas... sorri!

(Alma, Março 2006)

Resposta a Pandora

Ainda me lembro de ti, “miúda”, e de te ajudar a vestir o casaco por a saia ser curta. Ainda me lembro de ganhares o jogo, não sabendo jogar. Ainda me lembro de não conseguir parar de olhar para a tua saia...
Ainda me lembro de como sempre me conseguias tirar fotografias, mesmo quando fugia... lembro-me do riso, dos olhares, das intermináveis conversas, das brincadeiras comprometedoras, das palavras nunca ditas e da última vez que te vi. Escolheste-me a mim, abandonarias os teus amigos por mim... para passar uma noite, apenas, comigo e eu não deixei que o fizesses. Nunca deixei que o fizesses! Ainda me lembro do teu olhar, desolado, enquanto me ia embora...
Tenho a certeza que te interrogaste porquê... ambos sabemos que havia muito pelo meio... e muitas palavras proíbidas e desejos recalcados que não conseguia assumir. Eras “miúda” e quem agiu como miúdo fui eu: virei costas e parti, sem nunca me despedir.
Parece que foi ontem e uma eternidade de dias, pessoas, corpos e vontades já passaram pela minha vida. Atrás, lá bem atrás, ficaste tu... e agora apareces, com renovada segurança, mas com o mesmo sorriso de sempre... agora que assumo, que te quero, reaparecem as minhas reticências e tu nem vacilas... a minha “miúda” cresceu!?

(Alma, Março 2006)

Viagem

Num ápice pegas nas roupas, sem fazer escolhas reflectidas. Aleatoriamente, tudo o que precisas é posto em cima da cama. Num emaranhado de cores e texturas, sem qualquer ordem ou lógica, despejas tudo dentro da mala. O coração estremece enquanto relembras tudo o que passaste. Fugir, não é hipótese mas ficar, também não. A casa não te deixa esquecer e só te faz obcecar por todos os pormenores antes da partida dele.
Está tudo no mesmo lugar, as roupas em cima da cadeira, fruto da indecisão matinal; as papeladas do trabalho ao lado dos post-it's colados à mesa "Arrumo isto quando chegar! Um beijo com amor"; os sapatos espalhados; a máquina de barbear; os cd's abertos; os três livros que ele andava a ler; a toalha dele no chão; o cheiro da almofada... tudo! Limpas o pó meticulosamente com um espanador, só para manteres tudo em ordem, já que a tua própria cabeça se tornou num turbilhão de pensamentos desconexos que não consegues controlar.
Nunca pensaste ficar assim... sempre tiveram problemas, ele queixava-se de ti. Tu eras a rude, prepotente, sem ser meiga o suficiente! Tu queixavas-te dos rituais, das paranóias religiosas, das comidas estranhas e do pudor dele. E, mesmo assim, entre discussões e acusações, estavam juntos... e assim se mantiveram, ainda mais próximos, quando o barco sofreu o primeiro abanão... ao qual se seguiram muitos mais!
De rude esposa passaste a mãe, mulher, amante, amiga e confidente! A relação estreitou-se, o amor e toda a sua cumplicidade, sobressaíam apenas numa carícia...
Uniram forças, lutaram juntos, rezaram... encontraram a perfeita união ao atravessar as mais turbulentas águas, mas nem assim ele ficou...
A partida dele abalou-te pela certeza, pela sentença proferida de sorrisos nos lábios e a tranquilidade no olhar: “Vou partir, esta noite...”
Ontem tinhas-lo nos teus braços. Velaste por ele enquanto rezavas para que a partida fosse adiada, para que tudo fosse uma alucinação, apenas excesso de morfina a falar por ele... viste-o definhar, à tua frente, sem nada poderes fazer. Viste-o acalmar-se, e dormir! Ainda a chorar, cumpriste a promeça e completaste o ritual... “Que a tua alma voe em paz, meu amor!”
Hoje sofres e pensas “ele não quer que eu sofra”. Já não tens lágrimas, apenas uma angústia enorme no peito que não te deixa respirar.
Olhas à tua volta... e estás só! A casa, a pouco e pouco, começa a atormentar-te! Decides sair...
Vês os cd's, os livros, as fotografias e decides não levar nada. O passado pesa e não te deixa voar. Queres ir leve, como uma pena, de espírito e bagagem, e só o teu coração tem o peso do mundo!
Pegas na tua mala e sais. Hoje é dia de viagem, com bilhete só de ida, para um sítio qualquer...

(Escrito em Alma, a 22 Março)