sábado, dezembro 31, 2005

Ano novo...

De noite, mal dormia. Acordava cansada, com o desejo íntimo de voltar a adormecer sem sonhar... pelo menos uma noite, pelo menos uma mísera noite, sem sonhos nem pesadelos, sem as personagens distantes e desconhecidas que não a deixavam descansar... ao menos uma noite em que pudesse fechar os olhos, dormir, relaxar, sabendo que o acordar seria lento, progressivamente sentir-se-ia acordada até que os seus olhos se abririam na escuridão do quarto, no aconchego dos lençóis. Andava cansada. Acordava ainda mais cansada. A maquilhagem disfarçava as olheias e o sorriso era pintado a baton. Por dentro, as lágrimas amontoavam-se numa imensa cascata de tristeza.
O dia começava cedo e sempre do mesmo modo: despertava com o seu próprio grito de pânico, tremendo, agarrada a uma almofada e envolta em suor. A obrigação do trabalho, mais do que a vontade, faziam com que se levantasse da cama. O duche quente, muito quente, para tirar do corpo o que a atormentava... apenas ficava ali, parada, a sentir a água quente a acariciar-lhe a pele suada, enquanto tentava em nada pensar... A água era como uma superficial limpeza da alma, a serenidade matinal que precisava para aguentar o dia de trabalho.
Saía de casa para enfrentar a amálgama de corpos e almas que, sem pedir licença, bruscamente se tocam na confusão diária dos transportes. Chegava ao trabalho mais cansada ainda. Sempre tivera a impressão que estando rodeada de pessoas, por todos os lados, estas tiravam-lhe o seu bem mais precioso, a energia! Tornara-se, com o passar dos anos, um suplício andar na rua, nos transportes, nos centros comerciais apinhados de gente por todo lado, sem escapatória possível. A ideia de um simples jantar passou a causar-lhe ansiedade, um medo inexplicável e aterrador que a fazia olhar para as pessoas como sanguessugas energéticas, sempre ávidas a roubar-lhe a sua força vital.
Cansou-se de conversas superficiais, de bocas impensadas e invejosas de pequenas pessoas, de fingir que apreciava quando odiava e de ser delicada e educada com gente sem maneiras, mas de nariz empinado, que só vêem o seu umbigo. Cansou-se dos pseudo-intelectuais, aqueles que são muito profundos e que tudo sabem, que impõem a sua opinião perante todos, mas que têm um discurso repetitivo e intrínsecamente monótono... basta parar para observar, e ouvir, um bocadinho!
Tornou-se solitária, agressiva, desconfiada. A situação foi piorando gradualmente, o que afastou família e amigos... Sucumbiu ao pessimismo. Nada na vida tinha uma razão lógica de ser. A Igreja, por ser de homens, não a confortava, era um local inóspito e sem sentido, criado para acalmar as mentes, anestesiando-as, oferecendo-lhes um enlatado "dois em um" entre suposta salvação e pensamento dogmático. Não, já não se revia nisto... em Deus, muito menos! Nunca o vira, nunca foi ajudada, questionava-se da sua real existência... O Pai Natal esse, afinal também não existia, sendo meramente uma criação de incentivo consumista numa época de ironias e sarcasmos. A solidariedade e a bondade estavam em vias de extinção. O cinismo e a insensibilidade reinavam no quotidiano. O amor... esse sentimento, antes mágico e que a fazia sonhar, que significava o enorme apreço por alguém, a possibilidade de criar laços e estabelecer uma ligação, tornara-se sinónimo de ardil impudente para fortuitas relações que acabam num parque de estacionamento qualquer, entre duas golfadas de ar inspirado e ofegante.
A vida perdera muita da sua coloração original. O cor-de-rosa foi-se dissipando, e o negro assumiu posição activa. Naquela noite de 31 de Dezembro, quando o céu estava repleto de cores e a animação corria pelas ruas, ela anestesiara os seus fantasmas e dormia calmamente sobre a sua cama, com um sorriso nos lábios.
Na mesa de cabeceira restava apenas uma seringa. Da cozinha ao quarto, havia um rasto de ampolas e algumas embalagens vazias do sonífero que lhe correra nas veias. Foi descoberta três dias depois, pela sua mãe. Não se despedira de ninguém, não deixara nenhuma carta escrita... afinal, apenas queria descansar!

sexta-feira, dezembro 30, 2005

A filha

Sentado na cadeira frente a um computador ligado, penso no que hei-de fazer. Outrora tinha um motivo para o fazer, agora já não. Os trabalhos parecem-me ocos e simplesmente deixo de os fazer. Já não arranjo subterfúgios para o meu não querer. Falta de motivação? Ou puro desprazer? Depois de anos a fio, descubro que não é isto que quero.
A miúda ainda é nova e precisa de cuidados. Idas ao médico, o colégio privado e a roupa que, quase nova, é posta de lado, porque ela não pára de crescer...
A Manuela não compreende. Diz que a vida está cara e que a filha dela merece o melhor. Curioso, como agora é “a filha dela”. Lembro-me de quando ainda era a nossa filha, um projecto nosso, o nosso amor. Lembro-me de quando não interessava o que eu fazia, o que eu ganhava, quando a vida era mais simples, quando a ilusão de que só o amor chegava.
A Luísa nasceu e tudo mudou. Precisávamos de dinheiro certo ao fim do mês e a estabilidade paga-se caro. Vivi em função das duas, sem nunca me queixar. Adoro a Luísa, como nunca imaginei poder vir a amar assim uma mulher. Da Manuela... há quanto tempo não posso dizer o mesmo? Perdi conta aos dias! Nunca pensei que no meio dos nossos sonhos nos perdessemos um do outro e, muito menos, que eu me perdesse de mim.
O nosso amor tornou-se secundário face ao dinheiro, às exigências de uma boa educação, de um aparente bem-estar que exigia polidez e ostentação. Passámos a estar juntos socialmente, sem demonstrações afectivas, sem carinhos partilhados. Deixámos de ser quem éramos. A Manuela cedeu às próprias raízes, aos “traumas” da educação castradora com que sempre lutara, que a marcou profundamente e da qual, agora vejo, não foi capaz de se libertar...
Arrasto-me frente ao computador... deixei de o ver com paixão, deixei de ver a Manuela com tesão... Pela Luísa não sou capaz de fugir de tudo, não ainda... ela é ainda uma criança e eu amo-a demais para a ver somente dois dias por semana e deixá-la aos cuidados de uma mãe que se preocupa somente com compras e que não sabe o que é brincar! Por isso, mantenho a fachada de um casamento perfeito. Aos olhos da pequena, a relação dos pais é repleta de felicidade. Aos olhos da Manuela eu não sou mais do que uma conta bancária, sempre pronto a obedecer-lhe e a proporcionar-lhe mais um casaco de pele de marta ou o novo vestido da colecção de um estilista de renome ou a viagem paradisíaca que está em voga, e de onde tiramos as perfeitas fotografias da nossa (im)perfeita união.